Thursday, August 19, 2010

Quando um familiar morre

«...negar o sofrimento é sofrer duas vezes, esquecer e seguir em frente nunca foi um acto de coragem, não é mais do que a frouxa arma dos que não têm a valentia de chorar a aceitação da verdade e a ruína da idealidade.» (Hélder J. F. Chambel)

Nunca esquecerei aquele dia: depois de um jantar de família em que conhecera pela primeira vez o seu neto, ele desceu para nos acompanhar até ao carro. Com um olhar de muita ternura, mas no qual se vislumbrava uma dor mal-disfarçada, ele abraçou-me e segredou-me ao ouvido: "estou muito orgulhoso de ti, tiveste um menino lindo e estás a cuidar muito bem dele". Só mesmo um pai para dizer estas simples, mas tão significativas palavras a uma mãe solteira. Quando lhe olhei nos olhos agradecida percebi: ele estava a despedir-se de mim! Abracei-o com força, sabendo que aquele abraço poderia ser o último...

Momentos antes tinha tido a notícia que, depois de ter sofrido quase 13 anos, com operações, medicação, hemodiálises, etc. ele havia contraído um cancro no pulmão. A certeza da dura realidade foi tanta que disse à minha irmã no caminho de regresso a casa de minha mãe: "olha, é melhor prepararmo-nos, porque o pai não vai durar muito mais". Cerca de duas semanas depois já estando de volta ao meu trabalho no estrangeiro, recebi um telefonema às 3h30 da madrugada - o meu pai estava morto!

Sentei-me no sofá e assim fiquei durante um bom tempo, olhando para a parede sem ver nada, tentando assimilar a notícia que acabara de receber - parecia um sonho do qual poderia acordar a qualquer momento... e eu queria acordar desse sonho. Pensei em tudo o que disse e o que poderia ter-lhe dito, tudo o que fiz e poderia ter feito - mas era tarde demais. A luta tinha chegado ao fim e o resultado agora só Deus sabia. A sensação de impotência era tremenda!

Os dias seguintes passaram penosamente - eu mal conseguia falar. As lágrimas corriam-me no rosto constantemente e parecia que nada iria despertar-me daquele pesadelo. “Não!” A minha alma gritava: “Não!” Mas ali estava ele, o meu pai, num caixão rodeado de flores - o rosto outrora sorridente e de olhar terno, jazia duro, frio, sem vida. Ele não sentia mais os carinhos que lhe fazia no cabelo, nem os beijos que lhe dava no rosto, já não ouvia mais a minha voz dizendo: "pai, estou aqui, preciso de ti". A mão que eu tocava já não segurava mais na minha. Era o fim de tudo! Nunca mais ele me abraçaria. Nunca mais ele me protegeria. Não mais ele estaria ao meu lado para me apoiar nas minhas lutas. Acabaram-se os conselhos, os projectos, os passeios, as saídas, os jogos de cartas pela noite fora na casa da tia. Tudo se acabara. Senti-me perdida, desamparada.

Os que me rodeavam diziam: “Tens de ser forte!” Eu revoltava-me e pensava com os meus botões: «Tenho de ser forte??! É o meu pai que morreu, não é o vizinho, não é um simples conhecido, não é um cão... é o meu pai! Eu vou chorar até não ter mais lágrimas em mim para derramar!» 

O pior não era a morte dele, o que me doía mais era que o fim da luta que durara mais de 12 anos, não era aquele que eu idealizara. Desde que conheci o Senhor Jesus, aos 19 anos, eu sempre lutei pela conversão do meu pai - um agnóstico acérrimo - completamente avesso a tudo o que dissesse respeito às coisas de Deus. Nas longas cartas que lhe escrevia enquanto ele vivia em França, falava-lhe de Jesus, mas não havia maneira de ele aceitar converter-se. Mas não desisti - cada vez que pensava nele, sempre me recordava da crucificação de Jesus e dos dois criminosos que com ele haviam também sido condenados. Aquele homem que sempre fora criminoso e marginal na sociedade, foi salvo nos seus últimos minutos de vida. E eu pensava: se aquele homem foi salvo no fim da vida, enquanto o meu pai estiver vivo, eu vou pedir a Deus que o salve nem que seja no último segundo do último minuto da sua vida. E foi essa a minha oração durante mais de 10 anos. Mas a minha esperança, claro, era que o meu pai se convertesse, fosse para a igreja, se baptizasse e ainda vivesse muitos e muitos anos. Eu até sonhava com o dia em que ele me levaria ao altar vestida de noiva! Isso era o que eu queria, o que achava que estava certo acontecer...

Nada disso aconteceu. Durante esses longos anos, meu pai continuou em tratamentos devido a ter sido baleado na barriga (por acidente, dizia ele; por razões políticas, sabíamos nós). Foi submetido a diversas operações de reconstrução de órgãos internos. Chegou a ser dado como clinicamente morto por três vezes na mesa de cirurgia em ocasiões diferentes - mas Deus não o levou nessa altura. Já nos últimos tempos da sua vida, aquele homem outrora orgulhoso e de coração duro, tornara-se num homem humilde, que aceitava Deus, que se apegava a Ele e que se dedicava à sua família.

E Deus, na sua infinita sabedoria, permitiu que ele vivesse o suficiente para ver o seu único filho, o meu irmão, que tanta dor de cabeça lhe havia dado, casar e assentar, enfim, tornar-se um homem responsável. Permitiu que ele tivesse a alegria de ver seus netos nascer e de poder abraçá-los, ainda que tivesse sido só uma vez. Permitiu que visse todos os seus filhos tomarem um rumo na vida, ou estarem minimamente encarreirados – com os estudos completos, com trabalho e perspectivas de carreira. Permitiu que ele visse os filhos unidos formando uma verdadeira família, independentemente de sermos ou não filhos de mães diferentes. Permitiu que lhe perdoássemos pelo abandono, pelas traições e por todos os erros que cometeu no passado, depois de longas conversas a coração aberto... e só então é que Deus o levou! Hoje eu sei que Deus foi maravilhosamente bom para com o meu pai e lhe deu a oportunidade de ter uma vida completa, recheada de amor e a satisfação de ter o seu dever cumprido para com os filhos e sua família. E ainda permitiu que ele O conhecesse. Quantos hoje lutam para ter isso mesmo e não conseguem?

Deus fez tudo isto, mas não o curou do cancro, mesmo tendo Poder para isso - porque se o tivesse feito, aquele homem voltaria a endurecer o coração, regressaria à sua vida dissoluta longe de Deus e estaria perdido para sempre! Tal como ao apóstolo Paulo, Deus deixou que houvesse algo no meu pai que o mantivesse humilde para que pudesse salvá-lo. Recordo que quando, nos últimos tempos da sua vida, eu pedi a Deus para curar o meu pai do cancro, eu também desabafei com Ele que já estava farta de ver o meu pai sofrer e que se Ele achasse que era melhor então que o levasse logo porque eu não queria que ele tivesse de passar por quimioterapia, radioterapia e outros tratamentos que o iriam debilitar ainda mais tendo em conta o seu estado já precário de saúde e a sua idade avançada.

Na verdade, Deus ouviu e atendeu a tudo o que eu pedi e mesmo assim eu me revoltei. Não foi nada fácil lidar com a morte do meu pai - levei dois anos para compreender e ainda estou a superar (há dias que ainda choro de saudade). Cheguei até a voltar as costas a Deus, achando que só porque Ele não tinha feito as coisas do jeito que eu queria (que eu achava que era melhor), Ele não me amava mais, não me ouvia mais. Deixei de ter confiança na minha oração. Culpei-me, achando que poderia ter feito mais, ter lutado mais, ter jejuado mais, ter insistido mais...

Várias vezes ouço falar de pessoas que se afastaram da presença de Deus por causa da morte de um familiar. Compreendo a dor que sentem e o quão difícil é aceitar e lidar com a perda. Especialmente depois de anos de luta, jejuns, sacrifícios, propósitos, orações... Não duvido que as suas histórias sejam relativamente semelhantes à minha - pelo menos nas idealizações que fizemos em relação aos nossos familiares que desejamos ver curados, convertidos e salvos de uma certa forma e ficamos revoltados quando Deus acaba por fazer as coisas de outra maneira.

Às vezes, o nosso egoísmo não nos permite entender que Ele sabe e quer o que é melhor para eles - mesmo que esse melhor seja a morte. É muito difícil aceitar isto! Só conseguimos começar a compreendê-lo quando o próprio Deus nos ajuda a colocar-nos no lugar do outro, para perceber o que lhes fará felizes. Não digo que não devemos lutar pela conversão e cura dos nossos, pelo contrário, logo a seguir a Deus a nossa família está em primeiro lugar, é nossa obrigação lutar por eles! Mas devemos estar preparados para deixar que Deus faça as coisas do jeito d'Ele e nunca devemos esquecer que Deus nos ama - isso significa que nos respeita e respeita também os nossos familiares. Nós devemos seguir o Seu exemplo e amá-los simplesmente, respeitá-los nas suas decisões e apoiá-los sempre que necessário enquanto eles estão connosco em vida. Esse é o nosso papel!

E quando um familiar parte - não tente disfarçar a dor, não pense que "precisa" de ser forte naquele momento, não fuja do que sente , nem o esconda! A única maneira de ultrapassar a dor, é passando por ela, não contorná-la! Senti-la, em toda a sua profundidade, e expressá-la da forma que conseguir. Exteriorize a sua dor, não a disfarce. Não se preocupe se o (a) criticarem - chore, grite, rasgue a sua alma! Mas chore para Deus, grite para Deus, rasgue a sua alma para Deus, apoie-se no ombro d'Ele, aconchegue-se no Seu colo, pois Ele é O Consolador! Não importa o tempo que levar  - horas, dias, semanas, meses, anos... - a dor vai passar e a Paz voltará. Até lá, respeite-se como ser humano, respeite os seus sentimentos e seja sempre honesto consigo e com Deus.

Saiba que quando nós não expressamos a dor e a ignoramos, ela não desaparece, ela fica lá e quanto mais a tentarmos sufocar, tapar, disfarçar, pior é; cedo ou tarde, vai explodir e pode explodir da pior maneira, transformando-se em depressão profunda, desejo de suicídio, loucura, psicose, chegando até ao ponto de afectar a nossa saúde física. E isso acontece mesmo que você seja de Deus!

Não tente ser uma super-mulher ou um super-homem, respeite o seu próprio timing psicológico e emocional - lembre-se que para uns é mais fácil superar, para outros leva mais tempo. Ninguém é igual! O importante é você deixar que o Seu melhor Amigo esteja consigo também e principalmente neste momento de dor. Tal como fez comigo, Ele ajudará a compreender o que você não consegue compreender e a conseguir lidar com a sua perda de uma forma saudável e positiva.

Que Deus vos abençoe a todos !

Para meditar:

«Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer, (…) tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e tempo de saltar de alegria;(…)» (Ec. 3:1-4)

No comments:

Post a Comment